terça-feira, 30 de junho de 2009

Desafio linguístico e a diferença dos artistas

    Na leitura da página que fecha o último número da revista Visão, Ricardo Araújo Pereira foi destacando algumas notas que me fizeram sorrir. A abaixo apresentada chamou-me a atenção pelo que foi lido e pelo que foi lembrado / associado.

Assim se lia:

     Entre o que é (artista) e o que não é, este pequeno excerto propõe a aplicação e uma breve explicação de um conceito - polissemia - que me fez lembrar um outro: o da homonímia. Por vezes, aparecem confundidos entre si (ou mesmo com outros conceitos gramaticais), quanto mais não seja porque, ao nível da superfície, a consciência sincrónica da distinção pouco mais além vai da aproximação que o significado lexical oferece no caso da polissemia (explorando zonas ou campos de significado comuns, aproximados, assentes numa só entrada de dicionário), mas que a homonímia não tem.
      Um dos critérios fundamentais para o contraste polissemia / homonímia é o que diz respeito à etimologia: enquanto na primeira a entrada etimológica é uma só ('ser cabeça de cartaz', 'doer a cabeça', 'ser a cabeça do grupo', 'estar à cabeça' são expressões que recorrem a uma palavra comum com zonas de significado muito próximas - apontando para um campo semântico construído na base de uma palavra cujo étimo é para qualquer dos casos 'capitĭa-'), o mesmo não acontece com a segunda ('começar a música com o dó' e 'ter dó de muita gente' apontam para contextos de significado muito distanciados, comprovados ainda pela distinção etimológica de duas palavras: do italiano 'do', no primeiro caso, e do latim 'dolu-', no segundo); outros critérios frequentemente aduzidos para a diferenciação são bem mais falíveis.
       Ora, pela complexidade que a homonímia acarreta na sua explicação (no que à consciência, e sublinho, consciência linguística diz respeito), no processamento a que todos os professores se devem sujeitar (e muito mais os próprios alunos) pelo recurso a instrumentos e critérios distintivos, não me parece ajustada a prática comum de assumir este fenómeno como conteúdo de ensino-aprendizagem, por exemplo, a abordar logo no primeiro Ciclo - como, aliás, o acaba por fazer o novo programa homologado de Língua Portuguesa (Ensino Básico). Diria, assim, que, neste capítulo, se compromete alguma da progressão gramatical assente na dimensão do processamento de mecanismos linguísticos; com o programa anterior, ao assumir-se o tratamento da homonímia no terceiro ciclo, revelava-se uma consciência mais clara (e de possível, maior e melhor explicitação) de que as relações entre grafia e fonia são mais evidentes, nos primeiros anos de escolaridade, no plano da homofonia, homografia e paronímia (para não falar da pertinência maior do contraste destas relações com os comportamentos de escrita / leitura).
       Como saberão os alunos, de forma consciente, que o cabo de um talher ou um cabo de mar, por mais que se associem a um significado de extremidade, são exemplos homónimos (confrontem-se os étimos 'capŭlu-' / 'capu-') sem a ajuda de um bom dicionário? E à 'pena da galinha' associarão, polissemicamente, a 'pena da escrita' que hoje não utilizam, porque têm esferográficas? Entenderão que 'valer a pena' corresponde a uma realização polissémica da 'pena' que sentem ao ver um amigo partir (ambas provenientes de 'poena-')? E que esta última pena é homónima daquela que vêem na galinha (proveniente da forma latina 'penna-')?

       Espero que tenha dado para ver o que é e o que não é (polissemia / homonímia). Portanto, mais um caso para se preparar e/ou trabalhar com o dicionário ao lado (a acreditar num trabalho da gramática mais laboratorial, oficinal e menos na transmissão professor > aluno), evitando generalizações que o senso comum e a vontade de tudo fazer (com rapidez) tendem a oferecer, e algum estudo acaba por não conceder.

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