terça-feira, 6 de julho de 2010

De alguma deriva nas formas de tratamento

       Alguma da evolução da língua também se faz sentir na dimensão pragmática.

    No capítulo das formas de tratamento, muitos sinais de deriva podem ser perspectivados à luz das diferenças entre o que alguns textos deixam ler e o que as relações interpessoais dão a ver.

    "Este dia [quando Dâmaso fora convidado por Afonso a ir jantar ao Ramalhete] pareceu belo a Dâmaso, como se fosse feito de azul e ouro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incomodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes... Daí datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você. Depois, nessa semana, revelou aptidões úteis (...); e daí por diante passava horas à banca de Carlos (...) Tanta dedicação merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lho."

Os Maias, de Eça de Queirós, cap. VII (pág. 190)

     Cláudio Basto, no artigo "Formas de tratamento, em Português" publicado na Revista Lusitana (nº 29, pp. 183-202) regista 'você' como um derivação de 'vossa mercê' (tratamento nominal outrora dirigido ao rei), que o tempo fez registar com as variantes e reduções fonéticas de 'vossemecê', 'voss'mecê', 'vossancê', 'vomecê', võcê'. A par destas evoluções sonoras, chegou-se ao desprestígio social do tratamento (na zona do Minho e dos Açores há quem reaja, dizendo "você é estrebaria").
     Actualmente, a simplificação que a forma de tratamento permite - pela adopção e redução das marcas morfológicas de flexão verbal à terceira pessoa -; a vulgarização de um discurso de 'moda, de bom tom, de chic'; a exposição ao registo do Português do Brasil acabam por a converter a um sinal de crescente democratização, ainda que socialmente marcado na diferenciação do que é uma pessoa saber avaliar a adequação da sua utilização.
    Por isso, quando um aluno me trata por 'você' e eu o corrijo (explicando a inadequação desse tratamento face a alguém que nos é superior na idade, na experiência, no estatuto), a velha questão do respeito, da adequação, da importância ou mesmo da familiaridade é evocada, por um tratamento que me é contra-argumentado de forma afectiva, comparada à de um pai ou um avô. Em tempos diria, à de um rei!

      E a minha vontade, no meio de tanta deriva, é quase esquecer a questão e dizer: obrigado (mas, para o bem da integração social deles, não o posso fazer).

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