segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Uma gaivota voou... sobre um lago.

    Numa encenação de Nuno Cardoso, 'A Gaivota' (de Anton Tchékhov) passou pelo Teatro Nacional de São João (como se prova pelas fotografias de João Tuna).

    Num palco molhado, simbologia de reflexo e de fluidez, a agitação das águas retoma sempre o ponto de inércia, pela lacustre limitação e estagna-ção impostas pelo chão dos homens (qual escritor que busca "novas for-mas" e constata a rotina e o conformismo trazidos pelo tempo).
   No jogo dos contrastes que se comple(men)tam, a vida impõe-se na ténue fronteira entre o que é ilusão, ficção; desilusão, realidade. E no palco da vida surge aquilo a que todos assistem: desencontros de amor, antinomias do velho e do novo, do que flui e do que permanece, do campo e da cidade, da crise e do sonho, do 'eu' e do 'outro' que connosco anda (feito do posto, do posicionamento assumido tal qual cadeira que se arrasta para que nos possamos apoiar, sentar, acomodar).
    Da arte da escrita e do teatro, fica a imagem da vocação: a da entrega ao acto, na consciência de como há que vencer as dificuldades, os fracassos para que se possa obter a força interior que cada um assume da forma que melhor pode ou quer. Onde uns vêem a fama e celebridade desejadas, outros apenas encontram o trabalho que têm (e para o qual precisam de uma inspiração); onde uns buscam o que de insólito, novo e diferente há na arte, outros reconhecem o que esta tem de já consagrado; onde uns cumprem o papel que representam (com maior ou menor crença ou fé), outros questionam-se.
    E a gaivota voa, a gaivota crocita.
   O homem pode matá-la, pode matar-se.
   A ave pode morrer, mas a mulher que a encarna ainda foge, por mais que o passado a marque. Falta saber se o lago será suficientemente grande para o voo que quer dar.

    Tchékhov, como te entendo neste desassossego! Desde há um século, (re)escreve-se e (re)formula-se a nota de decadentismo, de angústia, de simbolismo, de um existencialismo antecipado. No jogo de desigualdades, no qual uns descem à dor, à perda e ao sofrimento (que abatem o ser humano), outros preferem a ilusão, deixando-se ficar por memórias de um passado que, não se querendo revisto, se impõe num presente apresentado como longe de qualquer mal. E a vida surge qual palco, qual cenário composto à medida dos anseios nele depositados.

2 comentários:

  1. Os altos e baixos que esta peça teve durante todos estes anos levam a que se sinta uma certa vontade de a ver com os próprios olhos para descobrir se a colocamos no topo ou não. Não a vi, mas pelos textos informativos a que tive acesso, pareceu-me que, pelo menos, o tema era bom.

    Eu vou ver 'O filme do desassossego'... (não se pode assistir a tudo). :D"

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  2. É verdade. Entre insucessos e sucessos, muito se deve também à encenação. A de Nuno Cardoso é muito boa. O conteúdo, a história tocam o lado da depressão, de um decadentismo 'à la fin du siècle'; a representação está muito bem conseguida.

    Pode ser que nos encontremos em 'O filme do desassossego'. Também quero.

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