terça-feira, 2 de novembro de 2010

Complementos, modificadores... ou nem isso!

     De volta às questões da sintaxe, mais propriamente das funções sintácticas.

     Entre várias dúvidas, uma parece ser a base para toda uma implicação de raciocínios consequentes (da função sintáctica de um constituinte à classificação sintáctica de um verbo).

     Q: Em 'A sopa sabe-me bem', qual é a função sintáctica de 'bem'? Complemento oblíquo? Modificador?

       R: O caso de ‘bem’ em ‘saber bem’ é um caso complexo para se analisar sintacticamente, pois o enunciado a trabalhar requer uma plataforma de âmbito semântico e pragmático. Na verdade, ‘saber’ não pode ser encarado, neste caso, como um verbo cujos traços de predicação se associam a um estado cognitivo (com a estrutura argumental correspondente à configuração do tipo ‘X saber Y’, como é usual nas ocorrências mais comuns).
     ‘Saber bem / mal’ entra no domínio das lexias ou das expressões fixas - objecto de um processo de lexicalização ou deriva semântica, com perda das regularidades de construção, nas quais cabem as didacticamente chamadas expressões idiomáticas e as colocações. Trata-se, assim, de uma ocorrência de 'saber' enquanto expressão de percepção psicológica / apreciativa / avaliativa - equiparável a verbos como ‘gostar’, ‘apreciar’ e os antónimos 'detestar', 'desapreciar'.
      É na perspectiva deste estado de coisas que tem cabimento proceder à análise da frase ‘A sopa sabe-me bem’. Para um sujeito (semanticamente tomado com o papel de objecto – ‘a sopa’) há um predicado constituído por uma expressão fixa (‘sabe-me bem’) que inclui um complemento indirecto (semanticamente tomado como o experienciador da apreciação e configurado pelo dativo - ‘me’ -, o ‘dativo ethicus’ que se encontra pragmaticamente associado ao locutor do enunciado). Trata-se de uma construção equiparada a 'A sopa agrada-me'.

     Este sentido integrador do processo de análise é o que pode ser depreendido da formulação de algumas orientações didácticas para a construção de uma gramática pedagógica (que, apoiada no domínio da sintaxe, não deixa de relevar um enfoque articulado com os usos da língua). Promove-se, então, uma redefinição no ensino da sintaxe, com dois tipos de implicação: abordar este domínio linguístico pela consideração dos significados a que as estruturas sintácticas respondem (claramente, orientando-se para uma dimensão mais comunicativa); encarar as actividades de natureza sintáctica mais como manipulação de enunciados do que mera identificação e análise das formas ou relações gramaticais.

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