terça-feira, 5 de novembro de 2013

Nova mudança no ensino do Português

     Ontem foi divulgada a proposta de novo programa de Português para o ensino Secundário, mais as respetivas metas curriculares.


     A leitura rápida do documento permite-me, por ora, dar conta de algumas notas que fui apontando à medida que tomava conhecimento de um programa, aqui e ali já comentado / adiantado até que foi ontem divulgado para um período de consulta, discussão e de apreciação crítica:

i) reconheço o princípio de integração que a publicitação simultânea do programa e das metas acaba por evidenciar, na pressuposta implicação e articulação das partes (ao contrário do sucedido no ensino básico, no qual se registam desajustamentos diversos, dada a posterior formulação das metas face a um programa nem sempre respeitado nos princípios metodológicos ou nos conteúdos);

ii) sublinho o interesse do texto justificativo que antecede a organização de conteúdos / obras para o nível de ensino secundário, numa orientação para alguns pressupostos pedagógico-didáticos que enformam o novo documento (nomeadamente, o da afirmação da centralidade do texto complexo e da sua abordagem segundo propostas não dependentes do que é o literal, o conhecimento inerte ou a aprendizagem na base da mera reprodução - apostando, portanto, na dimensão inferencial);

iii) considero a focalização da noção de género textual (estruturadora na construção do programa) como uma orientação reguladora linguisticamente aceitável, para a organização e planificação das aprendizagens ao nível tanto do texto não literário como do literário - mesmo que essa linha de ação não deva ser entendida como fechada (de modo a não significar a perspetivação crítica e as potencialidades singulares que os objetos textuais recriam, ao procurar ultrapassar o que possam ser dominantes tipológicas);

iv) aponto a valorização do texto literário como orientação relevante, ainda que alguns dos pressupostos da sua abordagem (contextualização das produções; organização diacrónica de conteúdos / obras; natureza estética, cultural, simbólica e estilisticamente motivada) convoquem estratégias que poderão ser revistas por alguns docentes como o regresso a práticas de história literária (como as que dominaram no tratamento de programas anteriores a 2001) em detrimento do princípio de fruição de leitura salientado pelo próprio texto justificativo do programa;

v) prevejo alguma justaposição / concorrência entre esta proposta de programa para Português e o programa em curso da disciplina de Literatura Portuguesa, apesar de o foco específico desta última não (dever) ser o que Português propõe;

vi) problematizo a gestão de tempos atribuídos aos domínios da oralidade, da escrita e da gramática, bem como o peso relativo atribuído a estes últimos, que ficam (no conjunto e sempre) com um valor total aproximado ao da educação literária - aliás, a constatação de que os tempos desta última mais os da avaliação formal são um total sempre superior à soma dos da compreensão e expressão oral, da leitura, da escrita e da gramática é reveladora do desequilíbrio e dos dilemas que antevejo nas práticas de ensino-aprendizagem: entre o trabalho de processualidades e (sub)competências associadas aos diferentes domínios contemplados (necessariamente morosas e de verificação lenta, quanto à apropriação, demonstração e avaliação de resultados) e o cumprimento de um conjunto de leituras (maioritariamente integrais, de complexidade considerável e de construção interpretativa densa, na referencialidade histórico-cultural, simbólica, estética e intemporal implicada);

vii) assumo como incompreensível a prioridade e a progressão (quase inexistentes, em termos práticos) dos aspetos gramaticais contemplados nos descritores das metas - por exemplo, como se as questões semânticas pudessem ser perifericamente relegadas para o 12º ano e, por exemplo, as questões aspetuais (pelos vistos só as gramaticais) possam ser tratadas num só tempo; como se não houvesse pragmática funcional / implicada nas lógicas inferidas na produção e na receção dos textos propostos para o 10º e 11º anos; como se a referência deítica pudesse ser alocada apenas num 11º ano, por contraposição à anafórica e catafórica conduzida para o 12º -, para não me referir concretamente à ausência de mecanismos sintáticos mais complexos explorados pelos textos e pelos discursos (literários ou não), pelas práticas tradicionais dos exames e com necessidade de consciencialização e explicitação óbvias (inversões, elipses, construções finitas e não finitas de sujeitos / complementos, processos combinatórios de coordenação e subordinação, só para mencionar alguns dos mais frequentes).

   E depois disto, quanto a classes de palavras, parece que a questão se tornou obsoleta no ensino secundário.
     Se estas metas são para levar a sério, tenho sérias dúvidas que tenha havido alguma validação científico-didática do documento. Por que motivo pedem aos professores que se pronunciem sobre uma manta de retalhos inconsequente, sem progressão e com uma gestão horária que qualquer professor no terreno, na prática real letiva, em contacto com alunos autênticos sabe que não faz sentido?
   Voltarei a esta reflexão, por certo, em futura oportunidade e com uma visão mais consistente do documento.

      No geral, entre as potencialidades e as fragilidades, esta proposta não se revela inovadora; instituinte de práticas muito diferenciadas, já por mim vividas ora como aluno de secundário (dos anos oitenta do século passado) ora como professor (na década seguinte). Curiosamente, vejo Saramago e um dos meus romances favoritos como uma das hipóteses de leitura a trabalhar: O Ano da Morte de Ricardo Reis.

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