segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Quem se lembra de tal à hora de jantar?

     Eis que me chega novo pedido de comentário, formulado por uma colega atenta a estes "trocadilhos" gráficos divulgados pelo Facebook.

     Numa imagem que circula pelo facebook, partilha-se, com o famoso "kkkkkkkk" (a representar o riso gutural dos "danadinhos para a brincadeira"), o aviso:
    Que se me oferece dizer? Que a criatividade linguística dos utilizadores (menos conscientes e/ou mais intuitivos ou, ainda, os mais divertidos e criativos, a julgar pelo 'assinado eu') é fantástica, mesmo que ela decorra de situações de erro. 
    Na verdade, muita da criatividade da língua surge neste último contexto. O dado é historicamente comprovável, até pela própria evolução do latim vulgar, atestada num registo como o "Appendix Probi" (terceiro de um conjunto de cinco apêndices, da autoria do gramático Probo, a dar conta de fenómenos de evolução glosados na perspetiva da sua gramaticalidade / agramaticalidade relativamente ao latim falado nos séculos III a IV). Hoje, em português e para olhos que não estejam a ver bem, sempre há uns óculos para compor a situação; e se ambos os termos sublinhados existem na nossa língua, é porque alguém deixou de, no latim, dizer o gramatical oculus e passou a utilizar o agramatical oc'lus (glosa 111, a revelar a síncope da vogal pós-tónica, indesejada para Probo) para se referir aos olhos. Assim, por via popular, nos chegam os olhos (< oc'lus); por via erudita, os óculos (< oculus). O mesmo sucedeu com auris non oricla (se hoje dizemos 'orelha' estamos mais para a forma dita agramatical do que para a base correta).
       O erro na imagem dada a ver/ler pode ser impeditivo do que se queira transmitir; porém, a leitura em voz alta repõe, na mente do leitor, a mensagem: "Fui almoçar".
    De novo, há a possibilidade de alguma interferência de um registo sonoro do português não europeu (mais familiar, por exemplo, ao da variedade do Brasil), que pode conduzir o falante a tentar registar, por escrito, o que lhe parece ser aquilo que familiarmente lhe é dado a ouvir. A par disto, considera-se ainda a inconsciência lexical (que vê duas palavras - 'ao mossar' - onde só existe uma - 'almoçar') e ortográfica (indiferenciação na grafia 'ss' / 'ç'). Alguma história da língua e a noção de alguns fenómenos de evolução fonética (contando com a deteção de dissimilação, síncope, palatalização) também ajudariam à correção pretendida.
      A par de tanta inconsciência, mais acrescento: quanto mais rápida for a produção oral da palavra 'almoçar' mais próxima fica a sílaba [al] do que aparece grafado na imagem como 'ao' (o que pode induzir o falante menos instruído à escrita de um ditongo foneticamente representado como [aw]).
    Instalada a comédia linguística, interessa dizer que ela só faz sentido por não se encontrar vulgarizado nenhum nome com a forma 'mossar'. Assim fosse, perder-se-ia toda a piada. Como só se reconhece 'mossar' como verbo (torcer o linho), 'fui ao mossar' é sintagma tomado como agramatical e, daí, sí na virtualidade cómica poder ser o que não é ou ler-se o que lá não está.

     À imagem de um apontamento anterior, a comunicação pode fazer-se, por mais que o ponto de partida pareça ruído. Por ora mais não digo (ou melhor, escrevo), porque é hora de jantar.

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